Richard Diegues
Tenho amigos a favor da quarentena obrigatória. Tenho amigos a favor da
reabertura imediata do país. De ambos os lados, enxergo pessoas de extrema
inteligência, com argumentos válidos e motivações pessoais distintas. Como ocorre
com o Gato de Schrodinger, cada um está certo e ao mesmo tempo errado, e só
saberemos a verdade quando a caixa for aberta daqui há algum tempo. E, ainda
assim, será uma verdade que dependerá apenas do consenso de quem a analisar em
um momento futuro, pois nunca será avaliada conforme a necessidade de cada um
dentro do momento em que a decisão foi tomada. Toda história que conhecemos não
é necessariamente verdade, pois ela sempre é escrita do ponto de vista do
historiador, o que torna humanamente impossível ser avaliada efetivamente de
forma completa e imparcial, do ponto de vista de todos que a vivenciaram.
Antes da pandemia as pessoas já bebiam e dirigiam, colocando não apenas
as suas vidas em risco, como a de outras pessoas. Faziam isso pois acreditavam
que tinham o controle, que nada ruim aconteceria, que estavam seguras e não
ameaçavam a vida de outros. Da mesma forma, quem hoje opta por ir para as ruas durante
a pandemia, raciocina que está tomando todos os cuidados necessários para não
se contaminar, e nem contaminar outras pessoas. Essa é a forma de raciocínio de
quem exerce o seu livre arbítrio de seguir na contramão do senso comum. E nada
mudou no pensamento dessas pessoas. É cultural.
Antes da pandemia as pessoas já costumavam se isolar em suas casas,
preferindo passar seu tempo descansando, cuidando de seus animais de estimação,
ou simplesmente assistindo seus programas preferidos na televisão, evitando o
contato com outras pessoas que não tinham interesse ou não confiavam, recebendo
em suas casas apenas aquelas com quem tinham maior intimidade, fosse por causa
de medos advindos de uma possível doença biológica, fosse por conta de um
transtorno emocional. Da mesma forma, quem hoje opta por permanecer em casa,
longe do contato social com outras pessoas, raciocina que é melhor passar seus
dias aguardando uma melhora da situação do mundo exterior, evitando o contato
com quem possa vir a abalar sua saúde de alguma forma, se expor a qualquer tipo
de perigo que não se julga capaz de controlar. E nada no pensamento dessas
pessoas mudou tampouco. É cultural também.
Eu não consigo me enquadrar, assim como não consigo me excluir
completamente, em nenhum dos dois grupos. Existe uma zona cinzenta, fora do
preto e do branco, e ao mesmo tempo em intersecção com ambos, que é onde eu
melhor me encaixo. Já tive muitas opiniões formadas sobre muitos assuntos, e
ainda tenho algumas que permanecem, mas a grande maioria delas foi se alterando
com o tempo, com minha experiência de vida, conhecimento, e boa parte devido a
empatia. Hoje procuro falar menos do que ouço, ler mais do que escrevo,
experimentar os sapatos dos outros antes de dizer que os meus são
desconfortáveis, pensar antes de tomar decisões que envolvam outras pessoas,
julgar um caso apenas depois de conhecer as três partes da história. Uma vez
que tento guiar minha vida dessa maneira, olho para meu espelho e me questiono
se tenho como julgar aqueles que são a favor do isolamento, também se tenho
como julgar os que são a favor da reabertura. Aquele sujeito que me encara de
volta deixa bem claro que não, que não tenho essa capacidade. Não sou eu quem
deve julgar as decisões de cada um, independente do que eu pense ser o correto
para mim, ou mesmo do que a grande maioria ache ser o correto para o mundo.
Se todos forem para as ruas, milhares podem morrer devido a pandemia,
boa parte poderá criar anticorpos e sobreviver, e chegará um dia que o vírus
não encontrará mais hospedeiros e desaparecerá da mesma forma que surgiu. Aqui
existe o fator da perda de vidas desnecessariamente, mas também existe o livre
arbítrio do ser humano e o direito que cada um possui sobre a sua própria vida.
Mas também o desespero pelo sustento de famílias, ou mesmo pela desestrutura
emocional que se dá pelo confinamento e isolamento social.
Se todos ficarem em casa, os casos de contaminação e mortes irão
diminuir até que chegará o dia em que o vírus não terá mais hospedeiros e
desaparecerá também. Aqui existe o fator da preservação de vidas, com o direito
de esperança de uma futura recuperação financeira e emocional, em que cada um
sabe de sua capacidade de absorção e recuperação monetária e mental.
Em ambos os casos, uma hora haverá um fim da pandemia, teremos um bom
período de sofrimento, e ninguém conseguirá passar por essa fase da mesma forma
que entrou nela.
Eu estou em casa, trancado, louco para sair, com medo de morrer, mas sem
realmente viver, passando o tempo, enquanto a vida se esvai, aguardando,
ansioso para retomar meus planos, com minha opinião, mas completamente sem
saber o que é certo, com muita esperança, mas pouca confiança. Não, eu não sei
o que acontecerá quando cada um abrir a sua caixa e olhar para o seu gato. Não
tenho como julgar, pois não sei qual é a verdade de cada um.
A única coisa que não tenho dúvida é que todos nós, nesse momento,
estamos vivos e mortos ao mesmo tempo. Mortos não podem julgar os vivos, e aos
vivos não adianta julgar os mortos.
Richard Diegues, 6 de junho de 2020.
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